Lendo a "autobibliografia" de Angela Melim
por ítalo Moriconi
Setembro de 2024
A criação poética em Angela Melim não é fruto da ambição, e sim da obstinação em construir um estilo, em afirmar uma palavra só sua, “como quem não quer nada”. Companheira de viagem, com afinidades, embora não propriamente integrante, pela chamada geração marginal dos anos 1970, talvez sua trajetória seja das que mais a fundo levou o poema e a própria vida para um registro à margem dos circuitos competitivos da notabilidade, da ambição, da consagração. Por isso está mais do que na hora de reler sua poesia e redescobrir a importância de seu lugar no panorama literário. Também por isso interessa a leitura prazerosa desta “autobibliografia”.
O sentido do trocadilho metafórico, autobiografia/autobibliografia, evidencia-se à medida que, como leitores, acompanhamos a sequência de memórias. Elas registram, com sabor de crônicas evocativas, todas as dimensões da experiência de vida da autora – leitora, tradutora, militante muito carioca (mas também cosmopolita) da poesia e da literatura, ativista política assumidamente comunista escrevendo em tempos que se querem agressivamente pós-comunistas.
Como não poderia deixar de ser, a autobiografia desta exemplar mulher de letras, sendo relato de uma verdadeira bibliofilia, acaba sendo também o delicado esboço de uma biografia da rede de amizades e cumplicidades que constituíram seu tempo. Ressaltem-se aqui os nomes de Luis Carlos Lima, Cleber Teixeira (o legendário editor da Noa Noa), Leonardo Fróes, entre outros e outras. Esses três já demarcam, para presentes e futuros historiadores da matéria literária no Brasil, todo um universo afetivo, existencial, estético, sobretudo ético.
É profunda e difícil a ética dos poetas que escrevem e vivem “como quem não quer nada”, em contraste com – e de certa forma também na recusa de – as exigências e ansiedades da erudição acadêmica e seus cânones enrijecidos. É de notar, neste memorialismo de Angela Melim o apego e o empenho pelas realidades simples do dia a dia. A prosa é casual porque a vida e a literatura aconteceram casualmente. Não há moral nem lição a extrair de cada história. Não são narrativas exemplares. Muitas vezes elas apontam para sonhos passados, alguns ocasionais, que não chegaram a se realizar, mas não há traço de ressentimento em nenhum desses relatos. Como se aprende nesta prosa de Melim, assim como em sua obra poética, resguardadas as diferenças estilísticas entre elas, a beleza e a emoção independem de qualquer metafísica.
Ítalo Moriconi é professor universitário, crítico literário e poeta. Publicou “O sangue de uma poeta”, “Cartas de Caio Fernando Abreu”, “Torquato Neto essencial” e “Como e porque ler a poesia brasileira do século XX”. Organizou as antologias “Os cem melhores contos” e “Os cem melhores poemas brasileiros do século”.