Renovando a compreensão sobre o surgimento da vanguarda
por Ana Bernstein
Outubro de 2024
O campo dos estudos da história da arte, bem como o da teoria e da crítica, tem sido marcado, ao longo da história, por uma perspectiva fundamentalmente euro-americana. Com um cânone de artistas e obras composto por uma longa linhagem de homens brancos “geniais”, essa perspectiva determina narrativas, objetos de estudo, modos de interpretação e referências que compõem o discurso sobre a “arte mundial” e/ou “global”, produzindo uma visão hegemônica, geocêntrica e indubitavelmente tendenciosa da arte.
A recente publicação de Descida ao cotidiano – o surgimento da arte contemporânea no Japão, de Pedro Erber, agora disponível em versão digital, põe em questão esse discurso hegemônico, ao traçar uma instigante história intelectual da emergência das vanguardas japonesas no período pós-Segunda Guerra Mundial, explorando o modo como a teoria e as práticas artísticas dessas vanguardas dialogam, se relacionam com discursos transnacionais do período – ou deles divergem –, em especial o Expressionismo Abstrato e o Concretismo, possibilitando, como o subtítulo indica, o surgimento da arte contemporânea no país.
A crescente abertura a países do Ocidente – que teve início no Japão, após sua derrota na guerra e a posterior ocupação do país pelas forças militares dos EUA (1945-1952) – favoreceu a ampla circulação de teorias e obras de artistas europeus e estadunidenses entre críticos e artistas japoneses, num momento de profundas transformações sociais, políticas e econômicas. O impacto da Arte Informal entre artistas japoneses, por exemplo, foi de tal magnitude que seu efeito ficou conhecido como “Tufão Informal”. Entretanto, o que se verifica não é uma recepção e/ou assimilação acrítica desses discursos. Erber chama atenção para “o processo complexo de tradução dos discursos visuais do Expressionismo Abstrato e do Informalismo pela crítica de arte japonesa dos anos 1950, no contexto de um projeto estético e político amplamente divergente do discurso euro-americano”. O autor examina as ressignificações das políticas da abstração pela crítica e vanguarda japonesa através da análise compreensiva e rigorosa do pensamento de críticos como Hariu Ichirō, Miyakawa Atsushi, Segi Shin’ichi e das práticas artísticas e escritos de grupos como o Gutai e Hi Red Center. Mas Erber articula também um paralelo interessante e original entre a vanguarda japonesa e a vanguarda brasileira concretista e neoconcretista que emerge no mesmo período, analisando as afinidades e diferenças entre as duas, numa operação crítica que descentra o mito do Modernismo como fenômeno fundamentalmente do Atlântico Norte.
A recepção da Arte Informal por críticos como Hariu Ichirō e Miyakawa Atsushi privilegiou sobretudo a materialidade da pintura, entendendo-a como uma libertação da forma e inauguração de uma outra possibilidade de expressão pictórica fundada na relação entre gesto e matéria, de modo independente da subjetividade do artista (note-se que esta visão se opõe diametralmente à interpretação da action painting por Harold Rosenberg, que identificava no “ato de pintar a mesma substância metafísica que a existência do artista”). Essa ênfase na materialidade é compartilhada por grupos de vanguarda como Gutai, cujo próprio nome pode ser traduzido como “concretude” ou “encorpamento”, e cujo manifesto afirma: “A matéria nunca se compromete com o espírito; o espírito nunca domina a matéria. Quando a matéria permanece intacta e expõe suas características, ela começa a contar uma história e até mesmo grita”.
Contudo, apesar da ênfase no concreto e das muitas semelhanças entre as ações, performances e obras que rompem definitivamente com a ideia de pintura como representação – por meio da quebra da moldura, provocando o que Miyakawa denominou de “descida” da arte “ao cotidiano”, levadas a cabo por artistas japoneses e por neoconcretistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark –, Erber observa que o Gutai se situava de forma diametralmente oposta ao Concretismo brasileiro, que em seu “caráter racionalista e mecanicista”, como dizia Ronaldo Brito, enxergava a pintura como pura expressão do intelecto. O próprio Mário Pedrosa declarou, após visitar uma exposição do Gutai em 1958, durante sua estadia no Japão, que “o Grupo Gutai nada tem a ver com o concreto daí”.
Erber reconhece “semelhanças inegáveis entre o Gutai e o Concretismo brasileiro”, especialmente com o Neoconcretismo — surgimento no mesmo momento pós-Segunda Guerra, situação periférica em relação à cena artística internacional com a qual dialogava, dissipação das fronteiras entre arte e vida, pintura e objeto, incorporação da poesia visual —, e descarta a visão hegemônica, que considera essas vanguardas como derivados do Modernismo euro-americano. Argumentando, em vez disso, que a convergência entre os dois grupos se deve sobretudo à ruptura que efetuam não só “com as tendências estéticas e ideológicas das quais surgiram, mas também com a política da abstração que moldara o discurso transnacional sobre a pintura ao longo da década de 1950”. É precisamente nessa postura que Erber identifica uma contemporaneidade fundamental entre as vanguardas japonesas e brasileiras.
Com conhecimento profundo do pensamento crítico e filosófico que marca os discursos da arte no Japão e no Brasil durante as décadas de 1950 e 1960, Pedro Erber apresenta em seu livro um quadro histórico e teórico original e multipolar do surgimento da arte contemporânea, traçando um panorama da cena artística internacional complexo e rico em nuances teóricas.
Para quem se interessa pela arte de vanguarda do Japão e/ou para quem dela nada conhece, Descida ao cotidiano – o surgimento da arte contemporânea no Japão é leitura imprescindível. Apoiado em uma ampla gama de referências sobre a arte e a filosofia no Japão do século 20, a escrita clara e elegante de Erber faz da leitura um prazer, oferecendo uma refrescante perspectiva que refuta a narrativa orientalista das histórias da arte norte-atlânticas e da filosofia europeia.
Ana Bernstein é Professora do Departamento de Teoria do Teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Leciona e pesquisa temas relativos à História da Arte, Estética e Teoria do Teatro, e Estudos da Performance. É autora de “A crítica cúmplice – Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno” (IMS, 2005), finalista do Prêmio Jabuti; “Francesca Woodman – fotografia e performatividade” (EdUERJ, 2015); “The flesh and the remains – looking at the work of Berna Reale” (Springer, 2017). Publicou, pela Zazie Edições, “Duas irmãs que não são irmãs: Francesca Woodman e Alix Cléo Roubaud” (2017) e coordena, com Laura Erber, a Coleção Perspectiva Feminista.